15/01/2021 - 12:08
Por Cecília Figueiredo, do Sindsep
O último domingo de janeiro (31) é comemorado o Dia Mundial contra a Hanseníase e, no Brasil, também o Dia Nacional de Combate e Prevenção da Hanseníase. A data foi instituída pela lei nº 12.135, em 18 de dezembro de 2009.
JANEIRO ROXO
Desde 2016, o mês de janeiro também é marcado pela campanha de conscientização sobre a Hanseníase, escolhida para diferenciar com a cor roxa, para ampliar o conhecimento sobre a patologia no Brasil, quebrar o estigma e, assim, passar do preconceito e desinformação à prevenção, tratamento precoce e queda de casos da doença.
Reprodução Internet
Apesar de importante a sensibilização para quebrar estigmas, a campanha do Janeiro Roxo de nada serve, além de colorir o calendário, se não houver governos comprometidos com o investimento no Sistema Único de Saúde. O Brasil ocupava até 2017 o segundo lugar em número de casos no mundo, com cerca de 27 mil no levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS). Perde apenas para a Índia, que acumulava até três anos atrás 126.164 casos da doença infectocontagiosa, mais conhecida como lepra. Na última década, foram registrados cerca de 30 mil casos novos por ano no Brasil.
No município de São Paulo, se depender do processo de precarização dos serviços públicos da administração direta imposta pelo processo de privatização do governo Bruno Covas, a campanha só exibirá uma cor na paleta do calendário anual da saúde.
TEM CURA, MAS PRECISA DE DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO
A hanseníase é uma doença antiga, porém rodeada de preconceitos e desconhecimento. Apesar de alguns comemorarem a inexistência de epidemia no Brasil, os números oficiais representam a ponta de um grande iceberg. Trata-se de uma doença silenciosa que se manifesta normalmente por manchas na pele e provoca diminuição da sensibilidade ou formigamento em mãos, pés ou olhos. Em muitos casos, a pessoa não repara nos sintomas e não sinaliza em consultas de rotina. Há ainda o desconhecimento profissional para tratar quem chega a um atendimento. A patologia é confundida com outras neuropatias periféricas ou dermatoses, e quem já tem o diagnóstico padece da falta de tratamento especializado.
Embora a doença tenha cura completa, o tratamento seja simples, eficaz e gratuito, e o site da Prefeitura de São Paulo afirme que o Município cumpra o objetivo da OMS, estabelecido em 2000, de reduzir a prevalência para menos de um caso por 10 mil habitantes, e registre que 159 pacientes estão em tratamento de hanseníase e mais de 1.500 em acompanhamento pós-alta, não dá pra respirar aliviada com a situação atual. Não há investimento na educação permanente de profissionais, realização de concursos públicos para reposição dos profissionais que se aposentam, busca ativa de novos casos e pacientes sequelados pela enfermidade estão à deriva, sem atendimento.
PRECARIZAÇÃO DO ATENDIMENTO
Das 28 unidades exibidas pelo site da Prefeitura de São Paulo, como referências para o atendimento a pessoas com a doença, 22 que estão sob a administração direta tem funcionado precariamente.
Sindsep no protesto, em outubro de 2020, contra o desmonte do complexo de saúde, que reúne o AE, o SAE/CTA, CER e CEO.
Este é o caso do Ambulatório de Especialidades (AE) Ceci - Dr. Alexandre Kalil Yasbek, na avenida Ceci, 2235, no Planalto Paulista, zona Sudeste de São Paulo, que tem deixado pessoas sem tratamento, curativos e sem esperança. "Infelizmente, a cidade de São Paulo enfrenta um desmonte na saúde sem precedentes, e o que está acontecendo com o AE Ceci é realmente muito triste. O Ceci é referência no tratamento de hanseníase há 50 anos. Os pacientes merecem respeito diante de uma doença tão grave e antiga, que pode deixar sérias sequelas, incapacitar as pessoas se elas não tiverem o tratamento", frisa Luba Melo, coordenadora da Região Sudeste do Sindsep.
Móveis empilhados e lixo exposto no acesso ao atendimento do AE registrados pelo Sindsep em outubro do ano passado.
DOR E DESESPERANÇA
Aos 74 anos, dona Zelita Dutra França pede que o atendimento no AE Ceci - Dr. Alexandre Kalil Yasbek volte a ser de qualidade como anos atrás. Vítima da hanseníase ainda jovem, Zelita conta que sofre muito pelas calosidades nos pés, que sempre foi tratada no AE Ceci, onde é cadastrada há 44 anos. Hoje, Zelita diz não reconhecer mais esse serviço.
“Eu era muito bem atendida no ambulatório, mas faz um tempo que não consigo mais atendimento, curativo e nem retirar as calosidades dos pés. Não consigo mais passar no médico, que é fundamental. O Ceci acabou. Não tem mais nada, não tem mais atendimento pra ninguém. Estou sem tratamento médico, isolada. Não sei o que vou fazer”, diz a idosa que vive em Diadema com uma filha.
As calosidades nos pés são consequências da hanseníase, doença crônica causada por uma bactéria [Mycobacterium leprae], o bacilo de Hansen, que afeta a pele e os nervos periféricos, com isso não é incomum ver pessoas com necrose, ulcerações, incapacidade de fechar os olhos, de elevar o pé e estender os dedos da mão e punho.
"Preciso desse atendimento para retirar os calos", diz dona Zelita, de 74 anos. | Foto: A. Pessoal
Desesperada pela falta de recursos para adquirir e fazer os curativos necessários, passar em consulta clínica, ela espera que a situação melhore no AE Ceci, que é sua única alternativa. “Eu preciso desse atendimento, da ajuda da enfermeira para retirar os calos, dos médicos para me ajudar, porque no posto de saúde próximo de onde moro, não entendem meu problema. Eu não tenho recursos e eu preciso melhorar, ficar boa, porque não tenho mais forças para cuidar de mim mesma”.
Isabel, filha de Ivane Maria Simões, de 83 anos, faz um relato semelhante. “Tem um posto de saúde perto de casa, mas não tem o tipo de atendimento que ofereciam no AE Ceci antigamente. Minha mãe nem está mais indo porque não tem mais o atendimento que precisa. Há um médico clínico apenas. Antes era um dermatologista. Só há uma enfermeira para fazer os curativos, antes havia uma equipe, a Sandra, a Lídia...umas enfermeiras bem atenciosas que cuidavam. No passado, minha mãe conseguia pegar os insumos para curativos, hoje temos que comprar. Nesse momento está com uma ferida na sola do pé, como sequela da hanseníase. Sempre abrem feridas e precisamos fazer curativos sempre. Fica caro”.
Diagnosticada com hanseníase em 1948, a mineira foi trazida para São Paulo por uma tia que a internou no antigo sanatório Santo Angelo, fundado em 1928 (época em que o Brasil passava por uma epidemia de hanseníase). Na época chamava-se "Leprosário Santo Ângelo", hoje ainda há pessoas que foram internadas compulsoriamente e vivem nas dependências do extinto leprosário, por terem perdido vínculos familiares e terem se tornado institucionalizadas. A colônia funciona junto das dependências do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, distrito de Jundiapeba, em Mogi das Cruzes (SP).
Ivane não estica os dedos das mãos, está com bolhas na sola dos pés e precisa de curativos. | Foto: A. Pessoal
Ivane casou-se e teve seu primeiro filho, hoje com 60 anos, na colônia Santo Ângelo. Passou mais de 10 anos no local, quando os exames mostraram que poderia receber “alta”. Tanto a mãe, quanto o pai (falecido em 2010) passavam no Ambulatório Ceci já nos anos 1980. “Eles eram muito bem atendidos. Meu pai, aparentemente, tinha menos sequelas da doença comparado a minha mãe. Lembro que eu ia com os dois ainda criança”, conta Isabel, hoje aos 51 anos.
Apesar de muitas doenças, ela considera a mãe uma guerreira. “Minha mãe está com os dedos completamente tortos, não consegue esticar os dedos das mãos. Ela não sente nada, é totalmente morto, quando pega algo quente, fica com bolhas, porque perdeu a sensibilidade. Retirou um câncer da tireoide, uma mama, mas tá firme aqui”, diz orgulhosa.
Para que possa andar, sapatos especiais são confeccionados para Ivane, que é cuidada por dois filhos e neta que moram com ela no Ipiranga. “Há uns dois anos minha mãe não passa mais no atendimento do AE Ceci. Tem que ir a cada três meses em razão da prova de vida para receber a aposentadoria. Nesse último ano eu entrei sozinha devido à pandemia [coronavírus] para chamar a profissional. Achei estranho porque havia muitos móveis desmontados, percebi que as coisas estavam mudando. São poucos funcionários que tem ali. A pouco tempo quando estive lá com ela estava tendo uma manifestação na porta do Ceci por conta de ameaça de privatização, me parece”, relata Isabel.
GOVERNO DORIA VETOU PROJETO DE CENTRO DE REFERÊNCIA
Segundo Leide Massom, usuária do AE Alexandre Yasbek, o tratamento para pessoas curadas, mas que ficaram sequeladas pela hanseníase está cada dia mais raro. “Havia um tratamento de excelência dado a nós ali. Com os profissionais se aposentando, não foram colocados outros no lugar, usam a justificativa de que não há pacientes, mas esquecem que as pessoas que tiveram hanseníase e ficaram sequeladas precisam de tratamento também, e não temos. Abandono total”.
Leide foi internada aos 21 anos e está curada, mas precisa tratar as cicatrizes que ficaram da enfermidade.| Foto: A. Pessoal
Internada aos 21 anos, no final da década de 1970, Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, conhecido como hospital-colônia Pirapitingui, em Itu – que chegou a comportar, na década de 1960, cerca de 4 mil portadores de hanseníase ao mesmo tempo –, Leide já acumulava muitas reações e problemas agravados por diagnósticos errados. “Cheia de feridas pelo corpo todo e eu só fui cuidada lá porque fui visitar uma tia trazida de Minas Gerais para esse hospital. Ela falou com um médico do hospital Pirapitingui e ele me internou. Fiquei uns cinco anos e era bem tratada lá, melhor do que estou sendo tratada agora”.
Cicatrizes nos pés, braços e na alma que registram o sofrimento, aos 65 anos, Leide transformou a tristeza em luta. “Fizemos a proposta, junto a um vereador, de um centro de referência para ter em São Paulo um centro de referência que realizasse cirurgias reparadoras, acompanhamento emocional, cursos para profissionais de saúde, aí o secretário [de Saúde, na gestão João Doria] Wilson Pollara vetou o nosso projeto. Foram seis anos de luta jogados no lixo por esse ‘maledeto’”, denuncia Leide, que teve afetada a cartilagem do nariz pela doença. “Mas não perdi a esperança nesse projeto. O Hospital Brigadeiro, na época do governo Serra iniciou as cirurgias reparadoras, mas depois parou”.
Ela confirma que após o desmonte da equipe multiprofissional – fisioterapeuta, dermatologista e outras especialidades, psicólogo, assistente social, enfermeiros –, falta tudo no AE Alexandre Yasbek. De insumos, curativos para calosidades, “que é bastante comum em quem tem as sequelas”, até pessoas capacitadas para atender. “Hanseníase não é vista como prioridade. Ainda há muito preconceito, por falta de esclarecimento”, acrescenta a conselheira gestora do AE Ceci.
"Hanseníase não é vista como prioridade", afirma a conselheira gestora do AE Ceci.