Funcionalismo

Quem são os inumeráveis? | Juarez trabalhava com a morte mas adorava viver

27/04/2021 15:27

Agenciador da unidade Itaquera, que faleceu em 12 de abril, em decorrência da Covid, completaria 60 anos em julho deste ano, 40 dos quais dedicados ao Serviço Funerário, e tinha muitos planos.

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep
 


Se números frios não tocam a gente, espero que histórias possam tocar. Parafraseando o que diz o poeta Bráulio Bessa, em Inumeráveis, o Sindsep rende uma homenagem a todas e todos trabalhadores do Serviço Funerário Municipal de São Paulo que se foram desde o início da pandemia, por meio da história de Juarez Gonzaga Silva, que morreu em 12 de abril de 2021, vítima da Covid e do descaso do governo Bruno Covas.
 
Juarez Gonzaga da Silva completaria 60 anos em julho deste ano e tinha planos. “Ele queria se aposentar, porque via que a situação estava muito feia. Ele me dizia que queria comprar um sítio, e a gente se mudaria pro meio do mato, cultivando as plantinhas e sendo feliz”, confidencia Lúcia L. Silva, esposa de Juarez por 40 anos.
 
 
Juarez e Lúcia, uma parceria na vida por 40 anos. | Foto: Arquivo Pessoal
 
 
Conheceu a “Nega”, como ele carinhosamente a chamava, aos 19 anos. Ambos do Paraná, vieram tentar a vida em São Paulo, por caminhos distintos. Se conheceram em Itaquaquecetuba e em pouco tempo se casaram. Separação somente no dia em que Juarez faleceu. “Até 12 de abril fomos uma família”, diz emocionada a viúva.
 
Juarez chegou a São Paulo ainda adolescente, trabalhou em transportadora, como ajudante, passou em algumas firmas, até que em 1981 foi contratado como forrador de caixões na Funerária do Parque Novo Mundo. Até chegar à função de agenciador da unidade do SFMSP Itaquera, onde atuava até abril, esteve em outros polos, distantes de Itaquaquecetuba, onde morou antes e depois de casar, com Lúcia e o casal de filhos, de 38 e 33 anos.
 
Nos polos do Parque Novo Mundo, Vila Guilherme e Itaquera fez muitos amigos, ganhou reconhecimento dos colegas que o elegeram presidente da Cipa em um período e trouxe para sua história as histórias de muita gente. Era com eles, aliás, que ele também compartilhava vídeos e fotos, seus momento felizes ao lado da esposa, no cultivo da horta sobre a laje da casa, no rio pescando ou simplesmente cozinhando em casa.
 
 
Na laje da casa, onde cultivava com a esposa hostaliças e frutas, ele exibia as amoras
 
Avô de um garoto de 11 anos, Juarez era um homem alegre, mas segundo Lúcia os enterros de avós por seus netos era algo que o abalava muito quando chegavam à Agência Itaquera. “Ele chorava, às vezes, quando lembrava que os netos iam fazer os processos de enterro de avós. Isso abalava muito ele. ‘Esse é um serviço que é pesado, mexe muito com a gente’”, relembra Lúcia.
 
Apesar de gostar do que fazia nesses 40 anos de Serviço Funerário, completados em janeiro deste ano, Lúcia conta que a pandemia fez marcas de tristeza em Juarez pela perda de muitos colegas. “‘Perdemos mais um colega’, ele dizia pra mim”.
 
Cuidadosa com o marido, Lúcia sempre cobrava do marido o uso de máscara, álcool em gel, mas o volume de pessoas na agência para contratar funerais era intenso e aumentou muito neste mês de março. No final do mês passado, Juarez começou a ter os primeiros sintomas de Covid e foi levado para um hospital do convênio. Ficou em observação aguardando a liberação de um leito para internação, ainda de madrugada foi transferido para o Hospital Stella Maris, em Guarulhos. 
 
Do dia que foi levado para o hospital até 12 de abril, a luta de Lúcia e do marido foi grande. “Eu ia visitá-lo todos os dias. Teve um dia que levei meu filho para o hospital, voltamos pra casa, porque a Covid dele foi mais leve e partia pra ver o Juarez. Eu tinha sido orientada a fazer o teste, logo que o internei e no dia 30 saiu o resultado que estava positiva também, mas ainda segui nas visitas até o dia 3 de abril, quando eu não aguentava mais e fui internada”.
 
Assim como o marido, Lúcia ficou com 50% do pulmão comprometido pelo vírus, passou seis dias num quarto e recebeu alta três dias antes de Juarez falecer. “Acho que ele sentiu falta das visitas, porque não demorou muito e ele faleceu”, avalia. 
 
 
Carpindo o terreno da sogra. | Arquivo Pessoal
 
Lúcia fala com admiração também da preocupação de seu marido com familiares, amigos, vizinhos e colegas. “Quando eu ia visitá-lo na UTI, ele perguntava de todos; se o irmão e a cunhada haviam melhorado....Eu dizia que eles estavam ainda no hospital, mas que iriam sair, e ele também. E ele respondia: ‘vou sair dessa sim, nega!’”. Apesar de o irmão ter se recuperado, a cunhada de Juarez também faleceu por complicações da Covid, quando ele ainda estava internado.
 
Para ela é uma incógnita a fonte da contaminação. “Não tem como saber, porque teve o irmão dele, a cunhada, nosso filho, depois ele e, por último, eu. Apesar de não ter tido contato com o irmão e a cunhada, e nosso filho estar trabalhando em home-office desde o início da pandemia, ele foi atingido pela doença e não suportou. Ele dizia que estava muito ruim trabalhar na Funerária nesses tempos. Muita gente circulando na agência. Tinha medo da doença”. 
 
Portador de diabetes e hipertensão, assim como a esposa, Juarez não teve o benefício do afastamento. “Ele chegou a comentar sobre a possibilidade de afastamento no ano passado se poderia se afastar, mas o diretor disse que cabia a ele a escolha, e ele pensou que era necessário na Agência Itaquera, e continuou. Esse ano ele dizia que iria parar, porque a situação tava muito feia”.
 
O servidor que gostava do que fazia e em quatro décadas de serviço público nunca chegou atrasado ao trabalho, tinha como responsabilidade emitir diariamente declarações de óbito, ajudar as famílias na escolha de urnas e oferecer algum apoio a quem chegava em situação fragilizada à Agência Itaquera. 
 
 
Nunca abriu mão do tempo de trabalhar e de estar com a família. | A. Pessoal
 
Ao falar do tamanho do vazio e da dor que sente, sem o companheiro, ela descreve a dificuldade de enfrentar tempos tão difíceis e sem perspectiva governamental. “É uma dor irreparável não ter mais aquele companheiro que está com você quase 24h. Não existia pra gente cada um executar uma tarefa. Nós conversávamos, planejávamos e executávamos juntos. E nunca imaginei que iríamos enfrentar essa pandemia, esses dias tão tristes. É assustador e falar ‘fique em casa’ é fácil, para quem tem o poder [referindo-se aos governos], mas quem é da classe pobre é difícil ficar em casa, sem um recurso, sem uma ajuda. Sabemos de pessoas que estão passando muita necessidade e nunca receberam auxílio. Tem muita falha do governo federal, do Estado, do prefeito. Não ajudam os mais pobres. O Juarez pensava da mesma forma, dizia que um governo queria aparecer mais que o outro [briga entre Bolsonaro e Doria pela vacina], mostrar poder. Não precisamos que eles briguem, mas que nos ajudem. Tanta gente precisando. Se não morremos pela doença, morremos de fome”.
 
Mesmo assim Lúcia tem esperança que essa crise será superada.
 
 
Gostava dos amigos e era querido por todos. | A. Pessoal