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Racismo Institucional | Do pânico ao pé na porta

17/11/2021 10:00

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep

 

Foto de capa: Pete Linforth por Pixabay 

 

 


Nyela* é outro exemplo de servidora pública negra que adoeceu pelo racismo enfrentado não apenas na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), mas em outros espaços da municipalidade. Ingressou há 11 anos na Prefeitura de São Paulo, a partir de concurso realizado em 2008. Já passou pelas secretarias de Educação, Habitação e Assistência.

 

Logo de cara não conseguiu se adaptar à equipe da secretaria para a qual foi nomeada, solicitou permuta para outra área do Poder Público e após o nascimento de seu filho, em 2016, é que reconheceu o racismo institucional, embora ainda não conseguisse nominá-lo.


O nome desse mal-estar

 

“Na Smads foi onde o processo de adoecimento ficou mais agudo pelo exercício profissional mesmo, que te leva a lidar com todas as expressões de desigualdades, fome, violência, racismo, machismo, e embora sejamos capacitadas a manter um distanciamento nas escutas às famílias, esse cenário acaba nos atravessando. Institucionalmente, as chefias, sejam elas coordenações de Cras ou supervisões de Assistência Social, têm perfis assediadores sobre as pessoas que se posicionam, que se colocam na defesa dos direitos da população, de quem denuncia as péssimas condições de trabalho, então, identificar o racismo institucional não é tão difícil, a gente demora é para nominá-lo”, afirma Nyela.

 

A percepção sobre algo que a impactava de forma negativa começou em 2010, quando trabalhava no Cras, num contexto de grandes contradições pela implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no município.

 

“A jornada de 6h para assistente social já vigorava no município e eu lembro que atendia de 40 a 50 pessoas por dia. Chamava o próximo na verdade, porque não dava para oferecer um atendimento qualificado como deve ocorrer. Eu percebia que a coordenadora do Cras nas reuniões de equipe – onde haviam muitas assistentes sociais, mas apenas eu e outra colega negras – era cerceada em minha fala ao fazer propostas de atender por agendamento, criar estratégias que garantissem um atendimento qualificado a essas famílias e que preservasse minimamente nossa saúde mental”.

 

Cerceamento e humilhação

 

O cerceamento da fala, as propostas ignoradas que em outras bocas brancas eram valorizadas e o questionamento constante de seus relatórios e suas análises, eram frequentemente realizados pela chefia imediata. “Se houver insatisfação a respeito da minha leitura sobre determinada situação, família, faça você a visita domiciliar e o relatório. Não vou refazer a minha análise”, respondia Nyela à coordenadora que, em sua avaliação, era incompetente.

 

Imagem: Erik Eris (Eriscolors)/Pixabay

 

Pela postura firme que assumiu, mas também posição hierarquicamente desigual em que se encontrava, a servidora entrou em rota de colisão com a chefia. Em fevereiro de 2014, a trabalhadora saiu de licença-maternidade, mas já estava trabalhando em outra unidade do Cras, que por muito tempo funcionou organizada pela equipe técnica. De repente, uma funcionária comissionada chegou para fazer a gestão da unidade.

 

“Quando eu retornei da licença-maternidade, em agosto, minhas colegas já estavam todas adoecidas pelo acúmulo de trabalho, assédio moral, perseguição política. Eu era a única assistente social negra ali e novamente passei a vivenciar todos os problemas de antes”.

 

Em certo período, as servidoras eram mandadas a campo para aplicar um questionário de recadastramento do BPC com as famílias. Nyela, que dos 15 questionários havia retornado com alguns sem preenchimento por respeitar a escolha das famílias em não querer responder foi submetida à exposição pela gestora.

O Cras chamou, na oportunidade, uma reunião com cerca de 10 representantes da administração, supervisão de SAS, supervisão do Observatório, gestão SUAS, e Nyela.

 

“Na reunião passaram a fazer apontamentos de que a minha atuação tinha sido equivocada, que eu precisava me tratar… Eu estava sozinha, sendo coagida, não podia responder o que eu acredito e não tive ação. Um assédio muito grande”.

 

“Na reunião passaram a fazer apontamentos de que a minha atuação tinha sido equivocada [na aplicação das entrevistas às 15 famílias], que eu precisava me tratar, que iriam abrir um processo administrativo contra mim, porque logo em seguida as visitas foram refeitas e as famílias aceitaram responder ao questionário… Eu estava sozinha, sendo coagida, não podia responder o que eu acredito e não tive ação. Um assédio muito grande”, relata a servidora que, neste ano, foi diagnosticada com síndrome do pânico. Problema que já havia sido responsável por levá-la, em 2010, ao tratamento com psiquiatra, uso de medicação controlada e terapia.

 

Corte da autonomia para fiscalizar

Em 2018, a servidora conseguiu, por meio de permuta, transferência para a Sehab, onde começou a atuar como assistente social numa área de urbanização de favelas com remoção de famílias, em um terreno de São Mateus que faz divisa com o município de Mauá. Como estava na supervisão social da equipe, começou a perceber indícios de mal uso de verbas públicas, corrupção e destinação de unidades habitacionais para quem estava fora da área. Passou a recolher provas para denunciar o antigo coordenador, e novamente se deparou com um processo de assédio moral, racismo institucional e o afastamento.

 

“Esse afastamento me doeu bastante porque me impediram de me despedir das famílias que eu atendia, da equipe de obras que eu supervisionava”, desabafa a técnica, ao reconhecer que a ocupação de um lugar de destaque por uma mulher negra, assistente social, incomodou um meio onde o predomínio é de homens brancos engenheiros, arquitetos. “E que tinha o meu posicionamento de defesa das famílias em situação de vulnerabilidade, de questionamentos a respeito de demolições desnecessárias que previam o projeto”, exemplifica.

 

“As expressões do racismo”, explica Nyela, “se dão desde o nascimento e em ambientes de trabalho não são distintas, e isso causa adoecimento”.

 

Imagem de Mateus Velho Paka por Pixabay 

 

Por outro lado, a perseguição aos/as “problemáticos” que questionam e cobram que o Poder Público exerça seu papel suscitou a organização em um coletivo destas trabalhadoras/es do Serviço Social de maneira mais conjunta, propiciada em 2010, quando houve uma pós-graduação na Uniban, promovida pela Smads.

 

“Nos fortalecemos muito a partir daí, porque estávamos na luta pela jornada de 30h, foi desse período também que nasceu a nossa organização contra o subsídio, o fortalecimento nas últimas greves, como Sampaprev. Essa organização das trabalhadoras e trabalhadores do Serviço Social não apenas da Smads, mas em outras políticas vem desde esse período, 2009, 2010…historicamente, o nosso lugar é de não reclamar, não nos posicionar, do não destaque. Quando isso ocorre causa um incômodo para os racistas e na gente causa um desgaste muito grande”.

 

Ela acredita que o avanço para derrotar o racismo ainda está num ritmo muito lento do necessário e “da dívida histórica que o Brasil tem com os negros e negras”, e a organização dentro do serviço público tem surgido a partir de muita dor.

 

Passou da hora de encarar e combater

 

“Apesar das iniciativas para combater o racismo de forma muito localizada e em pequeno número, reconheço que estamos ganhando, enquanto coletivo do Serviço Social que está espalhado em diversas secretarias, mais maturidade política, para nos aquilombarmos, nos organizarmos e agir contra o racismo institucional na Prefeitura de São Paulo”. Uma ação, que segundo ela, foi retardada pela pandemia, mas não abandonada.

 

 

Existe uma discussão das profissionais do Serviço Social para colocar o pé na porta e denunciar: a Prefeitura de São Paulo é racista!


“Passou da hora da Prefeitura de São Paulo encarar e combater o racismo que existe dentro da municipalidade. Desconheço um censo dos funcionários públicos municipais, que discuta pertencimento racial, orientação sexual, identidade de gênero... Talvez pudesse começar por aí, para que a gente pudesse identificar quem são essas trabalhadoras e trabalhadores, e, assim, seja possível combater de dentro pra fora e vice-versa o racismo cotidiano em nossa atuação profissional. É preciso escancarar que o racismo é praticado em todas as esferas da municipalidade”.
 

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