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Racismo Institucional | Histórias de dor, adoecimento e silenciamento

15/11/2021 10:30

Em continuidade à série de relatos sobre o que enfrentam as servidoras públicas negras, que trabalham na execução da Política de Assistência Social do Município de São Paulo, trazemos hoje o relato de Dara, nome fictício da entrevista. Confira:

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep

 

 


Dara*, depois de mais de 10 anos trabalhando na construção do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) em São Paulo, saiu bastante ferida e adoecida da área de atuação no serviço público, que em sua juventude era sinônimo de sonho e conquista.

 

“Minha saída da Política de Assistência Social por questionar as práticas racistas foi parecida com um velório de vítima da Covid, que ninguém ou poucas pessoas comparecem para se solidarizar. O Sindsep [Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo] contribuiu para mediar, junto à Smads [Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social], a minha transferência para a Secretaria de Cultura, onde atuo hoje. No entanto, os fatos e acontecimentos do racismo permaneceram sem responsabilização dos autores das discriminações e preconceitos ao qual fui submetida”.

 

A servidora pública Dara sugere: “basta olhar no serviço público e ver quantos trabalhadores negros estão ocupando os cargos de chefia”. Esse é um exercício de que a Prefeitura de São Paulo opera o racismo em suas estruturas.

 

"basta olhar no serviço público e ver quantos trabalhadores negros estão ocupando cargos de chefia...”

 

Essa subrepresentação é naturalizada para quem vive aqui, mas chama atenção de quem visita o Brasil. Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, que é considerada uma das jovens autoras de maior destaque na literatura africana, durante entrevista concedida, em junho deste ano, ao programa Roda Viva (TV Cultura) observou: “Se você tem uma população que tem números grandes de pessoas negras e elas não estão representadas principalmente em cargos altos, isso é um problema”. A escritora referia-se ao que notou quando esteve na Flip. “Percebi que fazer perguntas sobre isso fazia as pessoas desconfortáveis. As pessoas não pareciam reconhecer que isso era um problema”.

 

“Se você tem uma população que tem números grandes de pessoas negras e elas não estão representadas principalmente em cargos altos, isso é um problema”.

(Chimamanda Adichie, escritora nigeriana)



Conforme reportagem de Lucas Veloso, publicada em março deste ano, pelo blog 32xSP, dos 32 subprefeitos da capital paulista, apenas Gilmar Souza dos Santos (Itaim Paulista, zona leste), Heitor Sertão (Jabaquara, zona sul) e Edson Brasil da Silva (Pirituba/Jaraguá, zona noroeste) se autodeclaram pretos/pardos. De acordo com a matéria, a Prefeitura de São Paulo justificou que a falta de dados se deve ao fato de que o preenchimento da cor do servidor é autodeclarado e facultativo no ato da posse.

 

Com base nos dados obtidos via Cogesp, apenas 1/3 dos servidores ativos na administração municipal direta se autodeclaram negros. Mais precisamente 29,22%. A maioria mulher, 20,85%. Na prática, de cada três servidores, apenas um é negro.

 

Reprodução do mapa publicado pelo Blog 32xSP, com dados da Prefeitura de São Paulo

 

A precariedade de informação corrobora o nível de racismo do País. O Brasil é formado por uma população majoritariamente negra, aproximadamente 55%. No serviço público federal, negros e negras representam apenas 35,61% dos cargos ocupados por servidores. Entre os diplomatas brasileiros nem 6%. De acordo com o Censo Demográfico de 2010 (IBGE), quando a população da cidade de São Paulo era de 11.253.503 habitantes, aproximadamente 37% (4.164.504 habitantes) pertenciam à população autodeclarada negra (pretos e pardos), 60,6% brancos e 2,2% de amarelos.

 

Reprodução de gráfico da Agência Senado, publicado em junho de 2020, com base em dados do Ipea, CNJ, IBGE e Ministério da Saúde

 

Para Dara, se há consequências racistas das leis, das práticas ou dos costumes institucionais, a instituição é racista, independentemente do fato de os indivíduos que mantêm tais práticas terem ou não intenções racistas. “Considerado crime a discriminação resultante por raça ou cor, ainda no Brasil temos ausência de mecanismos de defesa para os trabalhadores que sofrem o racismo, sendo categorizado muitas vezes por assédio moral ou problemas de comportamento da pessoa. Os sindicatos, conselhos afins ainda não incorporam isso como tema a ser discutido para um enfrentamento nestas Instituições”, alerta.

 

Considerado crime a discriminação resultante por raça ou cor, ainda no Brasil temos ausência de mecanismos de defesa para os trabalhadores que sofrem o racismo.Imagem: Erik Eris (Eriscolors)/Pixabay

 

Nesse cenário, que é visível, mas não estatisticamente mensurável, classificar o racismo institucional acaba sendo tarefa hercúlea e que só pode ser detalhadamente caracterizado e descrito por quem já sentiu na pele. Dara relata, numa carta encaminhada ao setor de Recursos Humanos da Prefeitura/ SMADS, que a entrada, por concurso, na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social foi “repleta de paixão e perspectiva de crescimento intelectual e pessoal”, mas com o passar dos dias esses sentimentos foram cedendo lugar à crueza da realidade.

 

“Em 2008, CRAS e CREAS [serviços da Política Pública de Assistência Social] estavam em processo de implantação, colegas foram convidados a assumirem cargos de coordenação e recebem benefícios extras (horas suplementares), eu ansiosa esperando meu dia chegar para receber um convite, comecei a entender que isso não aconteceria, a dor do preterimento era tão grande que, por vezes, não conseguia conter as lágrimas perto da minha filha. Sentava num banco na estação do trem esperando a angústia passar para assumir um sorriso para que ela acreditasse que conseguiríamos vencer todos obstáculos, usando como lema que dias melhores viriam nas nossas vidas”.

 

Com o passar do tempo, a servidora Dara passou a perceber que o seu “perfil” não era aceito, o tom de voz "não era adequado", a forma de ser, de vestir e de trabalhar estavam incoerentes aos da chefia branca. “Mesmo com todo desempenho e dedicação ao trabalho, a discriminação e o preconceito foram maiores na minha trajetória, tirando minha potência e legitimidade”, diz, ao lembrar que muitas vezes outras colegas que não se dedicavam à carreira “eram beneficiadas e privilegiadas pela instituição”.

 

“Mesmo com todo desempenho e dedicação ao trabalho, a discriminação e o preconceito foram maiores na minha trajetória, tirando minha potência e legitimidade”

 

Situações vexatórias e humilhantes na frente de outros trabalhadores, interrupção de telefonema recebido da filha que estava em situação de emergência, certos gestos e atitudes marcaram no corpo negro de Dara ser alguém não aceita, mas não identificava essas situações como racismo. Abatida, a assistente social, mãe solo, seguiu sua busca por valorização e dias melhores. Em 2011 ingressou em seu segundo vínculo, por meio de concurso, em Franco da Rocha. Somente em 2018, ao assumir a gestão da rede socioassistencial, em São Paulo, é que a ficha caiu e se deu conta que as dificuldades, desrespeito, silenciamento e a dor enfrentadas tinham nome: racismo.

 

Após um longo trabalho educativo com a rede, em discussões envolvendo classe, raça e gênero no bojo da Política Pública de Assistência Social, passou a ser vista como aliada dos trabalhadores e perigosa pelas chefias.

 

O trabalho técnico de Dara, reconhecido e respeitado por colegas, recebeu o silenciamento e destrato público da gestão. “Presidentes de OSCs, colegas de trabalho, chefes sem nenhuma intervenção e proteção institucional, tiraram de mim qualquer possibilidade de tolerância e sobrevivência em viver num ambiente tão cancerígeno que é o racismo”, declara.

 

"...tiraram de mim qualquer possibilidade de tolerância e sobrevivência em viver num ambiente tão cancerígeno que é o racismo", desabafa.

 

Dara avalia que trabalhar na Prefeitura de São Paulo como servidora pública é um fetiche enorme, por se tratar de um espaço muito elitizado. “E a história dessa instituição não nasce da periferia. Essa instituição nasce da elite, que tem o racismo muito enraizado”.

 

"..a história dessa instituição [PMSP] não nasce da periferia (...), nasce da elite, que tem o racismo muito enraizado".|   Imagem: Melk Hagelslag / Pixabay
 



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