Saúde

Governo Covas quer destruir o único serviço municipal para pessoas Trans

25/11/2020 16:53

Programa de Hormonioterapia, que atende cerca de 1000 pessoas na UBS Santa Cecília está ameaçado por gestão do Iabas

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep


O Sindsep esteve na última sexta (20), em frente a Unidade Básica de Saúde (UBS)/ AMAE Santa Cecília para apurar com usuários do equipamento alterações que vêm sendo denunciadas após o anúncio de transferência de gestão do serviço para a organização social de saúde (OSS) Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas).

 

Na calçada, Flávia Anunciação, diretora do Sindsep e conselheira municipal de Saúde de São Paulo, dialogou com usuários e conselheiros gestores. “As notícias vão chegando de certas alterações que serão feitas, mas não se criou um espaço de diálogo com o usuário para que este seja ouvido, sobre o que acham destas alterações e de como ficará o serviço a partir de então. Nossa principal denúncia é que não se pode dentro do SUS tirar o espaço de fala e discussão do usuário e do controle social. Não é o que está acontecendo aqui”.

 

Enquanto dialogava com os usuários do serviço em frente a UBS Santa Cecília, a supervisora técnica de saúde Centro, Sonia Aparecida Almeida Carlos, se aproximou e fez questão de esclarecer detalhes para a dirigente do Sindsep. Flávia pactuou com a gestora que encaminhará ofício à STS e Coordenadoria Regional de Saúde Centro para agendar uma reunião com conselheiros gestores, usuários do Programa de Hormonioterapia e assim esclarecer todos os pontos que estão causando enorme angústia para quem depende do serviço público.

 

“Tem direito a uma política pública! [O programa de Hormonioterapia] foi instituído durante o governo Fernando Haddad, o secretário de Saúde à época era o [Alexandre] Padilha. É um serviço instituído dentro do SUS para a população trans, e qualquer alteração tem que ser pactuada e conversada”.

 

O atendimento a pessoas trans na capital foi iniciado há 5 anos em 9 UBSs da região central, onde está concentrada 70% das pessoas transexuais da cidade. Acompanhamento de psicólogo, endocrinologista e ginecologista, dispensação de medicações, além da criação de um protocolo de atendimento aos usuários interessados em iniciar a hormonioterapia são algumas das ofertas do serviço que já reúne cerca de 1000 cadastrados.

 

Flávia cita a Resolução nº 8 do Conselho Municipal de Saúde desrespeitada pela Prefeitura de São Paulo. De acordo com o documento, qualquer mudança num serviço de saúde deve ser conversada com o Conselho Gestor da unidade de saúde.

 

 “A gente também tem pactuado no Ministério Público que qualquer mudança, entrega de serviço para terceirização, tem que ser discutido com o Conselho Gestor e isso não está acontecendo aqui. Portanto, viemos aqui para garantir os espaços de fala e do Conselho Gestor da Unidade. Retomar esse espaço, que as pessoas possam dialogar e, principalmente, os usuários possam dizer para a gestão e Secretaria Municipal de Saúde o que é melhor como política pública para cada um deles”.

 

O tratamento buscado pela população LGBT demandou capacitação dos profissionais de saúde para atender às pessoas interessadas e dar o encaminhamento correto. O serviço integra a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), instituída pelo Ministério da Saúde, em dezembro de 2011, pelo governo Dilma Rousseff, para garantir às mulheres transexuais, às travestis e aos homens trans o direito à saúde integral, humanizada e de qualidade no Sistema Único de Saúde (SUS).

 

A advogada Débora Aligieri, usuária da Unidade Básica de Saúde (UBS) Santa Cecília, está indignada com os rumos que o serviço está tomando após a transferência da gestão da administração direta para a organização social (OSS) Iabas – implicada em uma série de investigações na saúde do Rio de Janeiro e sob a mira do Ministério Público em São Paulo.

 

“Desde o ano passado foi imposto uma mudança na gestão da unidade, seguindo um modelo do governo Covas que está sendo implantado no município inteiro, anunciado que seria transferida a gestão para uma organização social de Saúde, no caso da UBS Santa Cecília, a Iabas. Isso não foi dialogado com o Conselho Gestor da unidade, que tem a função de organizar e construir a política de saúde junto à gestão do SUS e os trabalhadores. E o Conselho Gestor ficou sabendo disso por meio dos médicos, que receberam um ultimato se permaneceriam na unidade sob a direção da OSS ou queriam ser transferidos pra outras unidades sob gestão da administração direta. Chamamos então uma reunião extraordinária do Conselho Gestor da UBS, com mais de 50 usuários, onde nos posicionamos dizendo que não queríamos a mudança da gestão. Esse posicionamento que tem legitimidade jurídica não foi respeitado pela gestão do Bruno Covas”.

 

Autora de uma série de processos contra planos de saúde, a advogada que utiliza a UBS desde 2014 e foi se aproximando do serviço não apenas pela questão do diabetes tratado na unidade, mas por ter lhe agradado o tratamento integral que a saúde pública proporciona, teme o desmonte do equipamento.

 

“A endocrinologista que cuida do meu diabetes, me acompanha desde 2014 na UBS, agora deixará de me atender porque não quer ficar sob a gestão do Iabas. Todo o acompanhamento será perdido com a entrada de um novo profissional...” 

 

A usuária também critica a falta de capacitação dos profissionais contratados a respeito de programas e do funcionamento do Sistema Único de Saúde. “Um dia eu cheguei aqui, logo que o Iabas assumiu a parte de enfermagem, e estava uma fila gigante na dispensação de fitas e lancetas, porque as funcionárias que foram colocadas não conheciam o programa de automonitoramento glicêmico do município e não sabiam o que fazer”.

 

Para ela, a OSS representa medicalização e geração de procedimentos para aumentar o faturamento. “Essa é uma lógica privada no SUS. Não cuida das pessoas, porque é pouco tempo de consulta, não cria vínculo com o usuário”.

 

A opinião é compartilhada por pessoas trans que são acompanhadas no Programa de Hormonioterapia da UBS Santa Cecília.

 

O jovem Luan Souza Pirovanni, usuário desde 2017 do Programa de Hormonioterapia da UBS Santa Cecília, afirma que mais do que oferta de tratamento, o serviço é sinônimo de respeito.

 

“Quando eu cheguei aqui [no serviço, em 2017] a doutora Glaucia [endocrinologista] fez várias perguntas, mas tratou da minha realidade sem causar constrangimentos, sem falas irrelevantes muita gente pergunta: pra que você quer isso [mudança de sexo]? Se eu não precisasse, se não tivesse uma importância pra mim esse tratamento, eu não estaria procurando. Agora, quando se tem um espaço desses para toda a população que tenha a mesma necessidade que eu e ser fechado?! Isso é algo que está nos matando, deixando a gente de lado novamente. A causa LGBT não é ouvida, a população T não é ouvida. Estão nos tratando como se não fôssemos ninguém”.

 

Morador de Capão Redondo, na zona Sul, Luan está tenso pela ameaça de transferência do programa da administração direta ao Iabas. Ele comentou suas inseguranças, a falta de equipamentos que realizam esse tipo de atendimento, tentativas de suicídios até que encontrasse uma forma de se reconhecer como trans e os retrocessos que poderá causar a precarização do Programa de Hormonioterapia para mais de 900 pessoas atendidas.

 

“Antes de eu chegar até aqui [tratamento na UBS] até suicídios eu já tentei, por me achar anormal. Tirar esse serviço onde me acolheram, cuidaram de mim e que sabem de fato da minha realidade é injusto para mim e todo mundo que teve essa abertura na vida. Vai atrapalhar minha condição como ser humano, cidadão”.

 

O tratamento com hormônios busca induzir o desenvolvimento de características sexuais secundárias compatíveis com a identidade de gênero da pessoa. De forma geral, a hormonioterapia deve ser continuada pela vida toda, sendo interrompida somente para a realização de cirurgias.

 

Hanna Stela Macário Cipriano Lourenço e Silva, 28 anos, também faz tratamento regular desde 2017 na unidade. Encaminhada por psicóloga do Centro de Cidadania LGBTI Laura Vermont, em São Miguel Paulista, hoje ela se mostra uma pessoa empoderada, mas antes passou muito tempo incomodada num corpo que não se reconhecia. Partiu para a automedicação hormonal, sem controle ou acompanhamento médico, por cinco anos, além de sofrer inúmeras vezes a transfobia na pele.

 

“Quando eu cheguei aqui na UBS em 2017 eu digo que pra mim foi uma revolução, uma luz no fim do túnel, a esperança, porque aqui, de fato, eu pude me sentir segura, ao fazer a terapia hormonal. É muito importante ter esse serviço com profissionais que acreditam no que você é, sem julgamentos”.

 

Assim como Luan, Hanna também não acredita que a OSS irá manter o Programa de Hormonioterapia.

 

“O intuito do Iabas é colocar profissionais dentro das UBSs e seguem diretrizes baseadas na produção. Hoje os profissionais que estão aqui e são servidores públicos pensam primeiro no paciente, no que ele precisa. Então você deixa de ter um serviço com profissionais servidores públicos de qualidade que pensam nas necessidades dos pacientes, para colocar profissionais que vão estar sob as diretrizes dessa empresa que pensa apenas em produção: ‘quando mais pessoas eu atender  em menos tempo, melhor’”.

 

Outro risco, que Hanna aponta é em relação à descontinuidade da medicação que é dispensada pelo programa aos atendidos, que já em vários momentos do ano falta.

 

“Já sofri com falta de medicação em vários momentos. Eu uso apenas uma medicação e em determinado tempo falta. Três meses têm, dois meses falta. “E aí a única coisa a se fazer é esperar a medicação chegar. Isso interrompe um ciclo de tratamento”, conta a moradora de São Matheus, que muitas vezes vem até o centro e volta de mãos abanando.

 

Gabriel de Oliveira Lima percebeu já na infância as diferenças que tinha em relação aos irmãos, na adolescência e juventude não se encaixar nos padrões impostos pela sociedade. A disforia o levou a deixar trabalhos e espaços onde não se sentia acolhido. Passou pelo Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, na Santa Cruz, por mais de um ano, onde fazia acompanhamento psiquiátrico e obteve o encaminhamento para o programa na UBS Santa Cecília. Com 34 anos, ele é um dos primeiros cadastrados no Programa de Hormonioterapia da UBS Santa Cecília.

 

“Aqui a gente descobre que iniciando a hormonioterapia, a gente vai tendo reconhecimento sobre o que a gente é. Como a gente se vê. Na questão do trato também, aqui as pessoas [profissionais] não te olham torto [preconceito] por estarem preparadas, dão um acolhimento legal pra gente. Eu consegui até agora ter mais interação social, porque fui me sentindo mais à vontade. Recentemente estava fazendo meu curso, fazendo várias coisas diferentes”.

 

Por falta de atendimento na rede pública, muitas pessoas transexuais acabam recorrendo à automedicação. Porém, o ideal é ter o acompanhamento com o endocrinologista para estabelecer a dose ideal do medicamento para cada pessoa e evitar problemas relacionados ao uso inadequado de hormônios.

 

Na opinião de Lima, o risco de perder a humanização do atendimento é uma das maiores preocupações se a OSS assumir a administração da UBS Santa Cecília.

 

“Pelo que a gente verificou, eles [Iabas] trabalham com metas, tem um período determinado de atendimento. Eu fico imaginando como ficará o tratamento de uma pessoa que está com disforia e precisa conversar com um psicólogo por 15 minutos...A pessoa tende a sair pior daqui. Isso não é viável pra gente, precisamos desse acolhimento mais humanizado. Se for pela Iabas será mais robotizado, sem a devida atenção”.

 

A avaliação de Gabriel vem da observação no trabalho que vem sendo realizado pela OSS em outros setores da unidade. “A gente fez a pesquisa aqui, quando o Iabas entrou não sabiam nem da existência do programa, da gente aqui. A gente vê que tá sendo retirado aos poucos da gente”.

 

Para impedir, os usuários do programa estão dispostos a se somar aos demais usuários da UBS, Conselho Gestor, Conselho Municipal de Saúde e Sindsep numa única luta em defesa do serviço pública e fora OSS.