Saúde

Secretaria de Saúde ouve OSS e despreza apelos de usuários e trabalhadores pela volta de médico da Saúde Indígena

22/06/2022 00:00

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep

 

 

 

 

 

A investida contra indígenas não é uma tragédia que assombra apenas o Norte do Brasil, como assistimos mais recentemente com os assassinatos do servidor público e indigenista, Bruno Pereira, e o jornalista britânico Dom Phillips. Esta é uma política de governos genocidas que visam apenas o lucro, para tanto a linha de chegada é o extermínio do meio ambiente e quem estiver na frente é eliminado ou desligado.

 

Em São Paulo essa investida vem ocorrendo mais recentemente contra a Saúde Indígena, que se tornou referência para o Brasil, por meio da UBS Real Parque, na região do Butantã, zona Oeste da Capital. Foi lá que há cinco anos começou a se fortalecer o atendimento da comunidade indígena Pankararu, presente na região há pelo menos 25 anos. Há um mês esse trabalho foi interrompido pela organização social de saúde (OSS) SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, que mantém contrato de gestão com a Prefeitura de São Paulo para gerenciar unidades básicas de saúde como a UBS Real Parque, onde trabalhava o médico de Família e Comunidade, Marco Antônio Silva dos Santos, demitido sem justificativa no dia 24 de maio.

 

Desde então seu desligamento está mobilizando não apenas colegas de trabalho, mas profissionais de várias unidades do município, antropólogos, pesquisadores, representantes dos cursos de Medicina e Residência da USP, Unifesp e Unicamp, sindicalistas, movimentos sociais, conselheiros/as de saúde, ativistas, usuários e a comunidade indígena Pankararu, que era cuidada pelo profissional há mais de cinco anos no território.

 

Conselheiro Gestor da UBS Parque Real repudia demissão de Marco dos Santos. | Reprodução de vídeo

 

A demissão injustificada do profissional médico deixou a população indígena sem atendimento. Após mais de 5 anos de trabalho numa região onde a fila de espera por uma consulta era de 7 meses e caiu para uma semana, onde havia uma comunidade indígena inserida em território urbano sem o devido respeito às suas tradições, onde haviam acamados e pessoas nunca acolhidas numa unidade de saúde, está ameaçada de retornar ao passado desassistido e o com o aval da Secretaria Municipal de Saúde, que silenciou até aqui.

 

SMS NÃO OUVE TRABALHADOR E USUÁRIO

 

Na terça-feira (21), durante a Mesa de Negociação da Saúde, a Secretaria Municipal se recusou a ouvir o trabalhador e usuários da UBS Real Parque, que integram o controle social e foram chamados para participar.

 

De acordo com Flávia Anunciação, secretária dos Trabalhadores da Saúde do Sindsep, entidade que participa da mesa setorial, o sindicato vem fazendo reiterados pedidos para discutir a readmissão do trabalhador e não houve avanço.

 

“A Secretaria Municipal de Saúde ouviu apenas a SPDM para se posicionar. Diante da mobilização dos usuários, dos depoimentos a respeito do trabalho desenvolvido pelo dr. Marco, há uma Secretaria de Saúde que faz a gestão do município ouvindo apenas uma OSS, sem ouvir o trabalhador e sem ouvir os usuários. Isso é um absurdo”.

 

Segundo ela, o assunto será pautado no Conselho Municipal de Saúde, na próxima sexta-feira (24), quando completa um mês da demissão do médico, para que ele possa ser convidado a falar aos conselheiros de saúde de toda a cidade de São Paulo.

 

MÉDICOS DEFLAGRAM PARALISAÇÃO

 

Na semana passada, dirigentes do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo (Simesp), que estão pressionando a Prefeitura de São Paulo desde a saída do médico, denunciaram em frente à sede do gabinete do prefeito Ricardo Nunes que a SPDM admitiu não quer mais o médico. Não se trata de desvio de conduta ou “faltas recorrentes” como a OSS chegou a alegar no início e depois da pressão das mobilizações e diante do Ministério Público voltou atrás. Agora está nas mãos da gestão municipal. Restam poucas dúvidas ou quase nada de que a motivação para a demissão foi política, já que o médico, Marco dos Santos, cumpria uma ação de liderança forte no território.

 

Manifestação realizada pelo Simesp, no dia 15/06, em frente à Prefeitura de São Paulo. | Foto: Simesp

 

Médico de Família e Comunidade pelo Grupo Hospitalar Conceição (2005), com graduação em Medicina pela Universidade de São Paulo (2002) e especialização de Saúde Indígena pela UNIFESP (2016), além de graduação em Geografia, Marco trabalhou como supervisor do Programa Mais Médicos para o Brasil (área indígena) e do Programa de Valorização da Atenção Básica do Ministério da Saúde (área indígena e município de São Paulo). Teve um papel fundamental na formação de uma geração de médicos especializados para atender a população na atenção básica de saúde, pelo enraizamento na comunidade e sua escolha pelo SUS.

 

Em 10 anos, atuando na implementação da Residência e Especialização da Medicina de Família e Comunidade da USP, Marco dos Santos vem trabalhando com Saúde Indígena. “Juntei aqui várias frentes do meu trabalho, que tanto mantivesse minha militância de médico de Família e Comunidade nesse território que tem ensino, como a Saúde Indígena que tem 10 anos que trabalho. Quando entrei lá [Real Parque] foi muito reconhecido por antropólogos e indígenas, pela política de saúde indígena estar mais aplicada às terras indígenas e não em território urbano. Esse respeito às tradições no cuidado criou laços muito fortes com a comunidade e parte, por isso, esse trabalho é reconhecido nacionalmente hoje. Mais de 40 pessoas já passaram com a gente em estágio conosco para conhecer esse trabalho, o que estimula os profissionais a trabalharem com a saúde indígena e fortalece a parceria com a comunidade”.

 

Em 5 anos e 2 meses atendendo na UBS Real Parque, na região do Butantã, Marco dos Santos conquistou a comunidade pela excelência do trabalho e tornou-se uma liderança entre os colegas. Não à toa foi demitido dois dias antes de assumir como representante mais votado dos trabalhadores no Conselho Gestor da UBS.

 

O orientador de médicos residentes da Faculdade de Medicina da USP, que também já havia trabalhado na Supervisão Técnica de Saúde do Butantã como assessor de participação popular, mobilizando eleições e o fortalecimento do controle social no SUS com a revitalização de Conselhos Gestores atuantes e críticos, renunciou ao salário de médico pago pela organização social e aceitou receber cerca de 1/3 desse valor para trabalhar na STS Butantã por acreditar no fortalecimento do SUS. Durante a pandemia, Marco junto com os trabalhadores do SUS, fez horas extras, se expôs aos riscos e também questionou processos de trabalho que não levaram em conta a saúde dos trabalhadores da saúde, que foram submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, “ao cumprimento de metas”, que não caminha junto com os princípios do SUS.

 

Muitos médicos e médicas de unidades do Butantã foram residentes do dr. Marco dos Santos

 

“Fui chamado no final da tarde do dia anterior [23] para que eu comparecesse pela manhã e ai me disseram que eu estava demitido sem aviso prévio, sem justa causa, pagariam todos os direitos e nada mais tinham a dizer. Eu insisti em saber a motivação, eles alegaram que teria havido denúncias de que eu teria pressionado pessoas a trabalhar aos sábados – um direito que as pessoas tinham e eu estava me manifestando --, mas não me mostraram nenhuma evidência disso, não pediram minha explicação, nem deram a oportunidade para outra versão a respeito disso e eu nunca pressionei nenhum trabalhador, o que fiz foi incentivar a defesa de seus direitos. Por ser médico e ter uma certa segurança, sempre tentei dar voz ao que chegava a mim de diversas maneiras”, relatou Marco, que enxerga com preocupação isso se tornar também um precedente para quem tenha posicionamento político em defesa do coletivo dos trabalhadores e da comunidade.

 

Marco nunca deixou de se mobilizar ou questionar situações precárias de trabalho, como mais recentemente na paralisação dos médicos em São Paulo, onde apesar da decisão judicial mobilizou trabalhadores por se tratar de um momento de muita estafa. “Estávamos com uma sobrecarga imensa de trabalho, no pico da ômicron e além da jornada, havia a vacinação, um trabalho muito grande para a equipe de enfermagem. Os fatos que eles mostram, sem localizar exatamente, me parece que são nessa época, a 10ª semana de abertura da unidade básica de saúde de final de semana, de um total de 11 finais de semanas, onde nos foi comunicado na quarta que a UBS não abriria no sábado, e na sexta disseram que abriria. As pessoas ficaram chorando. Eu fiquei muito indignado porque todos estavam muito sobrecarregados. Uma agente comunitária de saúde para trabalhar precisar pagar alguém para olhar seus filhos e acaba pagando para trabalhar. Não sei, não posso afirmar, ser leviano”, sugere.

 

Menos de uma hora após a demissão do médico, uma série de manifestações contrárias à demissão foram iniciadas em torno da UBS. Moradores do Real Parque, Jardim Panorama e da Comunidade Pankararu gravaram vídeos indignados, exigindo a readmissão imediata do médico e vêm realizando manifestações constantes há quase um mês.

 

 

VOZES DA COMUNIDADE

 

Para dona Clarice, liderança Pankararu, o desligamento do profissional é visto como um ataque aos indígenas, mas não há espaço para conformismo.

 

“Querem calar nossa boca, mas não vamos nos calar. E quem não estiver acostumado com os povos indígenas é bom ir se acostumando. Ouvi dizer que somos ignorantes. Somos lutadores, batalhadores, não abrimos mão dos nossos direitos. Não tivemos direito à consulta, quando ficamos sabendo foi quando nosso médico já havia sido demitido. Queremos nosso médico de volta, um médico que entenda nossa caminhada, que entenda nosso modo de vida. Estamos aqui há mais de 25 anos mantendo nossa cultura, nossa tradição dentro do Real Parque e é muito difícil encontrar alguém que entenda a nossa tradição e o doutor Marco chegou aqui só para acrescentar. Dentro dessa UBS só trouxe melhoria para o povo Pankararu e o povo da comunidade, assim passamos a ser vistos com outros olhares, com mais respeito, entendendo o nosso viver aqui dentro. A gente não vai desistir da nossa caminhada e não vai se calar”, alertou.

 

Manifestação de liderança Pankararu dentro da UBS Real Parque

 

“Demissão política e arbitrária do médico, dr. Marco, extremamente dedicado aos pacientes que atendia com humanidade, generosidade e enorme competência. Não há dúvidas que a organização social de saúde SPDM, que faz a gestão da UBS Real Parque, demitiu o dr. Marco como represália ao seu decisivo apoio à demanda histórica da população Real Parque, Jardim Panorama, Pankararu”, destaca Kayan Pankararu, que integra o Conselho Gestor da UBS Real Parque, na carta de repúdio entregue à representante da SPDM. Para o representante, a demissão caracteriza uma represália ao controle social, princípio do SUS desprezado pelas OSSs. “Elas se caracterizam por sua falta de transparência. A represália não atingiu apenas ao doutor Marco, mas também o instituto de controle social, na medida em que o referido médico foi eleito membro do Conselho Gestor de Saúde”, frisam os indígenas.

 

Organizados pelo Simesp, médicos de dez unidades básicas de saúde da região do Butantã vêm mantendo uma paralisação, participando de atos, mobilizações desde a demissão do médico de Saúde Indígena da UBS Real Parque. Os profissionais se somam a outros trabalhadores das unidades, comunidade usuária da UBS e ativistas do SUS. A maioria dos médicos que atuam nas unidades do território foram orientados pelo médico demitido, formado numa universidade pública e que em 20 anos sempre trabalhou no SUS.

 

 

“Na reunião que houve com a Secretaria Municipal de Saúde acharam esquisito que 10 UBSs façam greve em função de um médico, mas a maioria que parou foram meus alunos na Residência. Estou há 20 anos formado trabalhando no SUS , então é essa esperança de pessoas que estão começando a vida profissional e querem trabalhar no SUS. Não é o caminho mais fácil, mais confortável, é cansativo trabalhar na ponta, faltam recursos, mas ao acontecer tive demonstrações de agentes comunitários de saúde que trabalharam comigo há 15 anos da importância dessa perseverança”, ressalta Marco.

 

O Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva e Atenção Primaria e o Programa de Residência em Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP encaminharam um manifesto enfatizando a competência do médico e compromisso com a construção do SUS.

 

 

 

“Nas unidades nas quais trabalhou foi sempre um modelo de comprometimento e excelência para nossos alunos. Por isso a estranheza com a demissão sumária e sem motivos aparentes além do seu permanente compromisso por melhores condições de trabalho e a construção de um SUS de qualidade, objetivos que unem ensino, pesquisa e assistência em nossa região. Juntamos então nossas vozes para que a decisão intempestiva possa ser revista, já que abre um inaceitável precedente a prejudica o ensino e assistência em nossa região em momento de extrema necessidade”, destaca um dos trechos do documento.

 

O pesquisador, José Maurício Arruti, professor do Departamento de Antropologia da Unicamp, que há cerca de 30 anos acompanha o povo Pankararu e nos últimos 7 anos os residentes em São Paulo, em especial no Real Parque constata a  “construção de uma relação, praticamente inédita no Brasil, de reconhecimento e respeito mútuo entre uma UBS e um povo indígena em contexto urbano” e a “UBS do Real Parque” ter se tornado “ uma experiência de referência para jovens em processo de formação e residência interessados na saúde indígena”.

 

DERAM A CHAVE PRA OSS

 

A secretária dos Trabalhadores da Saúde do Sindsep e conselheira municipal de Saúde, Flávia Anunciação, vê com grande preocupação o que está ocorrendo com o profissional, por se tratar de um caso clássico de desrespeito ao controle social por uma OSS, que é também quem está ditando a política pública de saúde no Município de São Paulo.

 

“É muito difícil a constatação do desrespeito ao controle social, não apenas da unidade, mas dos usuários, que são pacientes do doutor Marco e que relatam o bom atendimento que ele presta, quanto ele é zeloso com as políticas públicas promovidas pelo SUS. Ele atua numa área de periferia, onde existem indígenas e possuem uma política de saúde específica, e durante todo o período laboral dentro dessa UBS Real Parque ele lutou e efetivou essa política. Do outro lado, existe uma OSS que chega arbitrariamente e faz o desmonte, como se essa comunidade indígena não tivesse nenhum valor. As vozes dessa comunidade não tivessem valor algum. A SPDM é quem dita as regras e as normas da política pública dentro do Município de São Paulo, com a conivência da Secretaria Municipal de Saúde. A SPDM não é SUS, mas uma organização social que está dentro do SUS. Neste sentido, o SUS é esse movimento da comunidade em defesa do médico, em defesa da saúde indígena, do serviço que ele presta para essa comunidade e ela não pode ser silenciada. Tem que ser ouvida, respeitada e o médico imediatamente readmitido ao serviço de saúde”, defende.

 

A dirigente classificou o caráter “ditatorial” da demissão pela OSS e sugere a criação de um observatório de RH das OSS. “Para apurar como se dão as demissões nessas organizações sociais contratadas pela Prefeitura de São Paulo. Porque no caso do doutor Marco, a SPDM disse que havia várias queixas em relação a ele, mas ele foi demitido sem justa causa, em dado momento por conta da pressão da comunidade ofereceram uma vaga ao médico em outra unidade de saúde, aí não se ouve falar em sindicância, apuração dos fatos e, pior, não deu ao profissional o direito à ampla defesa. O que a SPDM disse é lei que vale, independente das outras vozes na comunidade em favor do dr. Marco”.

 



A maioria das imagens aqui publicadas foram gentilmente cedidas pelo entrevistado, Marco dos Santos.