25/03/2022 10:51
Por Cecília Figueiredo, do Sindsep
Laura Cristina Cardoso, socorrista do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de São Paulo foi vítima na semana passada de injúria racial, durante atendimento a um idoso. É ela mesma quem faz o relato em seu perfil de Facebook, após mais uma maratona de 24h de plantão.
Postagem feita pela socorrista que viralizou nas redes sociais.
Servidora pública municipal em São Paulo há 18 anos, 12 dos quais no Samu, a enfermeira também é professora no curso de Enfermagem do Senac, onde seus alunos não apenas acompanham o dia a dia do atendimento pré-hospitalar, como se indignam com situações de preconceito como essa vivida por Laura no último dia 12 de março.
“Estou achando curiosa a comoção em torno dessa situação, porque preconceito já se tornou bastante comum no dia a dia da profissão. Mas, como eu estava realizando uma maratona de plantões de 24h, e meus alunos gostam de ler, escrevi um texto para cada plantão. Um desses alunos compartilhou em uma página do movimento negro e acabou aparecendo um pouco mais”, diz tranquilamente, ao acrescentar que não é algo exclusivo com ela.
Pedidos para que subam pelo elevador de serviço ou para tirar as botas para entrar na residência, são exemplos recorrentes citados pela servidora. “Isso é muito comum e não só para mim, mas para todos os colegas, principalmente na pandemia. Nossa postura, numa situação dessa quando há a negativa para entrar na casa, é: então, traga a vítima até aqui. Continuamos atendendo a pessoa mesmo depois de ser ofendida, porque nosso lema é: ‘nada mais importante do que salvar uma vida’”.
Para ela, o racismo não é uma pauta menor, e ela tem consciência de que enquanto servidora pública poderia ter acionado a polícia, por ter sofrido injúria racial, no entanto a vida se sobrepunha. “Não acredito que uma ação se sustentaria também. Abrir um BO significaria arrastar o assunto, porque nada acontece”, acredita a socorrista, que nesses 13 anos perdeu as contas de quantas vezes já foi vítima de preconceito, pelo menos 1 vez em cada 3 plantões.
LIÇÕES QUE LEVA NA BAGAGEM
Na cena de racismo, de 12 de março, a enfermeira resume o desfecho com resiliência. Frente a uma senhora que acompanhava a vítima no quarto a ser atendida, e que grita desesperada: “e agora, fulano? Ela é negra”. E o fulano retorna: “tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas”. Sua resposta é, sem dúvida, dar seguimento ao atendimento ao idoso, portanto, de uma verdadeira servidora pública e defensora do Sistema Único de Saúde. “Nada que minha mãe não esperasse ou a Lourdes Estevão, que foi quem me treinou quando eu era jovem no Hospital do Campo Limpo”, responde a socorrista para mim quando eu a indago.
Orgulhosa de sua condição de servidora pública, Laura fala da autonomia que existe entre um servidor e um trabalhador terceirizado.
“Quando entrei no Samu, era preciso fazer um curso durante um mês e se não passasse poderia escolher outra unidade para trabalhar, ou fazer o curso novamente até passar. Com a terceirização, o treinamento é online. Como se aprende protocolo de fratura de quadril online? Os trabalhadores que estão junto conosco são ótimos, mas o treinamento presencial somos nós quem fazemos”.
Segundo ela, o questionamento a condutas sem protocolo normalmente não será feito também por um trabalhador contratado, mas um servidor público, independente da hierarquia.
“Lembro do que a Lourdes falava pra gente: ‘nossa estabilidade enquanto servidoras/es não é para não ser demitida/o, é para falar o que pensa, questionar o que vemos de errado. Para dizer a um médico branco que ele não pode amputar um membro de uma pessoa com material que é para cortar carro, por exemplo”, cita como uma das lições que aprendeu no Hospital Municipal do Campo Limpo, onde trabalhou por seis anos, logo que chegou de Assis, para assumir a vaga no concurso público que conquistou na cidade de São Paulo.
Ao lembrar de sua chegada à capital, no início dos anos 2000, para assumir a vaga no concurso de auxiliar de enfermagem, se emociona. “Não sabia nada. Cheguei ao Hospital do Campo Limpo e era uma coisa enorme e a Lourdes [Estevão] foi quem pegou na minha mão, mesmo, e me treinou, me ajudou. No PS me dava a maior força. Havia uma mudança recente [dos fármacos] para genéricos, aí o médico escrevia ‘Antak’, eu olhava pra caixinha e só tinha ‘Ranitidina’ e não sabia que era a mesma coisa. A maioria não sabia. Ela ensinava. Quando era antibiótico, ela dizia: ‘esse precisa de ficha para solicitação de antimicrobiano. Ela fazia o trabalho dela e o meu comigo, até eu aprender”, conta.
Laura chegou para substituir uma das vagas deixadas pelo famigerado Plano de Atendimento à Saúde (PAS) dos governos Maluf/Pitta. “ Talvez a Lourdes nem se recorde, porque era muita gente, uma nuvem de concursados chegando ao hospital. Era a gestão da Marta, que havia feito um concurso muito grande para substituir o PAS. E ela foi ótima na acolhida. As pessoas estavam bravas, porque diziam estão tirando um monte de gente que sabe trabalhar e colocando quem não sabe. Mas, eu passei no concurso e a Lourdes sempre acreditou muito nisso, e dizia: se passou no concurso, conquistou esse lugar, é só a gente treinar que eles vão aprender. E eu aprendi mesmo. Todos aprendemos. Depois disso, sempre que chega alguém novo eu tenho a maior paciência do mundo. Recebo, ensino, porque eu fui muito bem recebida na Prefeitura de São Paulo por pessoas como a Lourdes”.
SENTIDO DE SOLIDARIZAR
A dirigente do Sindsep, Lourdes Estevão, que faz parte da comunidade negra, ficou bastante emocionada com o relato da socorrista do Samu. Não apenas por trazer a grandeza da resposta da profissional numa situação clássica de preconceito, como a vivida em 12 de março, mas pela formação que contribuiu para isso: a defesa do SUS. Em sua opinião, impulsionar a solidariedade a Laura significa dizer não ao preconceito, mas também lutar por políticas públicas pela eliminação do racismo e contra todos os tipos de preconceito na sociedade.
“Laura foi mais uma vítima no exercício de sua função, do preconceito estruturado na sociedade brasileira, que reflete na violência, pobreza e genocídio de milhões de negras e negros deste país. Solidarizar com Laura é também parabenizar por sua atitude humana e profissional, capaz de superar naquele momento a ação preconceituosa da vítima e familiares, para dar lugar à vida que seria salva pelas suas mãos negras. Solidarizar com Laura é dizer não ao preconceito racial. É denunciar e exigir ações concretas contra todas as atitudes criminosas e preconceituosas. É exigir políticas públicas de qualidade, que tenham em conta as especificidades dessa comunidade. É exigir igualdade de oportunidades. Solidarizar com Laura é nos organizar junto, negras e negros, e dizer Não a todo tipo de preconceito. Muito obrigada, Laura!”
HOMENAGEADA POR PADILHA
A situação de injúria racial vivida pela servidora, Laura Cristina Cardoso, também foi tema de uma moção de louvor do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), protocolado na Câmara Federal.
Na homenagem, publicada na coluna Painel da Folha de São Paulo, na edição de 23 de março, o parlamentar afirmou que o caso é simbólico e que Laura é mais uma brasileira que sofre diariamente com os ataques racistas "em uma sociedade onde a juventude negra é exterminada e nossa população negra é violentada pela ausência de direitos".
"A homenagem feita a Laura também será um ato à vida de todos os negros e negras da nossa sociedade e uma manifestação desta Casa contra o racismo", acrescentou Padilha.