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16/11/2021 - 10:00

Racismo Institucional | Adquiri a síndrome de burnout

Gina é o nome fictício da servidora pública negra que, como nas matérias anteriores, compartilha conosco o enfrentamento da violência racista que viveu e segue impune, sob a negligência da administração municipal.

Por Cecília Figueiredo, do Sindsep


Foto capa: Joca Duarte

 



A assistente social Gina*, mais uma de nossas entrevistadas na série de matérias sobre racismo institucional na Prefeitura de São Paulo, afirma em seu relato encaminhado à administração municipal, que os sinais de racismo foram identificados por ela bem cedo.

 

“Desde que piso na prefeitura, a partir de 2010, não sou aceita na maioria dos espaços onde atuo. Sempre um comentário de que eu deveria me silenciar, primeiro pelo probatório, e depois para sobreviver a uma hierarquia. Entendi desde cedo que a prefeitura exigia um 'certo comportamento' que era bem diferente do meu, expansiva, articulada, comunicativa. Fui sempre recomendada ao ajustamento, porque na prefeitura existe uma legitimação das violências do trabalho. Ou seja, o lado mais fraco sai perdendo. E esses toques estavam sendo dados por servidoras que estavam se aposentando e tinham enfrentado a ditadura no exercício de suas atividades”, descreveu Gina.

 

"Fui sempre recomendada ao ajustamento, porque na prefeitura existe uma legitimação das violências do trabalho. Ou seja, o lado mais fraco sai perdendo. E esses toques estavam sendo dados por servidoras que estavam se aposentando e tinham enfrentado a ditadura no exercício de suas atividades"

 

 

Assim, é a condução nos ambientes de trabalho na Smads. Um ambiente de propagação do medo às trabalhadoras sociais negras que vão se apagando, silenciando para sobreviver ao emprego. Para isso, a gestão vai se utilizando de uma estratégia bem eficiente que é a racialização, explicada pelo psiquiatra Franz Fanon que é a caracterização do que é ser negro e como ele deve ser e se comportar dentro desta sociedade classita, sexista, homofóbica e racista.

 

 |Imagem de Tumisu por Pixabay 

 

 

Muitas servidoras negras buscaram aprimoramento ao longo da sua permanência nos órgãos públicos, porém todo esse esforço de conhecimento é facilmente desqualificado pela racialização empregada a elas. “Sempre ocorre a estigmatização de uma trabalhadora preta, pela forma como intervém, como se movimenta e reage às situações, criou-se estigmas de que as mulheres críticas, são pretas arrogantes, desrespeitosas com suas chefias. Essas inclusive, utilizam muito os artigos do próprio Estatuto do Servidor Público como tentativa de calar, estratégia de deslegitimar as servidoras dizendo que não agem com urbanidade e/ou são insubordinadas. Na verdade os estigmas funcionam para nos manter as margens, porque o nosso corpo e a nossa cor são o próprio insulto e repúdio”.


Com duas formações acadêmicas e duas especializações, Gina sempre teve no trabalho um valor precioso, uma dignidade humana, bem, um conceito herdado dos pais nordestinos que descobriram cedo que de maravilha havia muito pouco no Sudeste do Brasil, e nada vem de graça.

 

Em sua observação, é insuportável a presença de uma mulher preta empoderada, inteligente na Smads. Gina dá como exemplo as gesticulações geradas ao falar numa reunião: “as pessoas demonstram incomodação, viram a cadeira quando uma mulher negra começa a falar”.



Uma situação que conflita com a realidade, já que a grande parte das servidoras que atendem à população nos serviços de Assistência Social nas pontas da cidade, periferias, são negras. Aliás, territórios onde vivem pretos e pretas, em sua maioria. O atendimento é, em média, 65% de pessoas pretas. Apesar de ser quem cuida, não é quem produz conhecimento.

 

De acordo com o relatório Igualdade Racial em São Paulo: Avanços e Desafios, divulgado em 2016 pela Prefeitura de São Paulo, a população negra concentra-se nas periferias da cidade em locais com poucas oportunidades de emprego. Em locais como Parelheiros (extremo leste), a população negra chega a 57,1%, enquanto em Pinheiros (zona oeste) é de apenas 7,3%.



Em 11 anos dedicados à Política de Assistência Social na Prefeitura de São Paulo, suas qualificações e aprendizados sobre a profissão nunca foram valorizados pelas chefias imediatas. Ao pedir para trabalhar numa unidade do Cras mais próximo de onde morava recebe a primeira negativa, porque na avaliação da chefia esse benefício deveria ficar com outra trabalhadora branca que por fazer mestrado precisava trabalhar em uma unidade mais tranquila (território predominantemente branco). Mesmo Gina apresentando seu diploma de especialização em Gestão Pública essa vantagem não poderia ficar com uma trabalhadora negra que é “ pau para toda obra”, como a servidora nos conta. Após Gina questionar as motivações do seu pedido negado, a Supervisora da Unidade um tanto ofendida cedeu-a para trabalhar em outra unidade, cuja localidade era mais distante da sua casa e a demanda de trabalho era exponencialmente maior devido inclusive a densidade geográfica do território negro.

 

Anos depois, pede à supervisora para atuar no Creas, “um sonho antigo”, mas novamente é negado com a justificativa de que “eu não tinha perfil para trabalhar com ONGs”. Inconformada, por saber que faltavam servidores na unidade, recorre à chefia das supervisoras em Smads e foi autorizada a se transferir para o Creas, sob uma condição provisória de teste – algo inexistente na estrutura. “Um servidor é transferido ou não, por necessidade”, diz Gina. Na unidade, ela trabalhou quase três meses em uma sala, isolada, sozinha, junto aos arquivos de prontuários, sem função.

 

Inconformada, por saber que faltavam servidores na unidade, recorre à chefia das supervisoras em Smads e foi autorizada a se transferir para o Creas, sob uma condição provisória de teste – algo inexistente na estrutura.

 

“Percebo melhor a humilhação, a discriminação, o rebaixamento e o que significa ser impedida de exercer a profissão por ‘acharem’ que eu não sou apropriada”, lembra Gina, ao enfatizar que o episódio evidenciou o racismo a que estava sendo submetida.


De acordo com Gina, a opressão, o isolamento, a retirada de suas atividades denunciados à Supervisão de Assistência Social (SAS) custaram-lhe mais uma mudança de vida e uma remoção “ex officio” para outro Creas, onde foi recebida com o estigma de denunciante, encrenqueira… A chegada foi marcada por grande mal estar diante da equipe, devido a uma narrativa distorcida do que realmente teria acontecido. Além das perseguições, a servidora passou a observar irregularidades e, desta vez, decidiu abrir um processo administrativo, que lhe renderam duas transferências, uma repreensão e uma síndrome de burnout (exaustão extrema, estresse e esgotamento físico, resultantes de situações de trabalho desgastante e esgotamento profissional).

 

Acusada de ser uma “pessoa difícil”, sem que as irregularidades fossem devidamente apuradas, Gina foi novamente transferida para outro Creas. Mais adoecida, Gina foi bem acolhida no novo ambiente até janeiro deste ano, quando a autonomia do trabalho foi cessada e práticas autoritárias voltaram a ocorrer.

 

Além das perseguições, a servidora passou a observar irregularidades e, desta vez, decidiu abrir um processo administrativo, que lhe renderam duas transferências, uma repreensão e uma síndrome de burnout

 

“Muitos falam de racismo sutil, velado, mas para quem o vive no cotidiano é avassalador e traz bastante nocividade à vida. Infelizmente o racismo só é entendido quando uma pessoa é agredida verbalmente ou fisicamente, ou quando há uma injúria”, reflete Gina, que encaminhou nos últimos anos relatórios para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo, para a Secretaria de Direitos Humanos da Cidade, para a Corregedoria do Município, para seu conselho de classe, além do RH Central da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) e até a publicação desta reportagem não havia qualquer responsabilização ou conversa sobre o racismo com os autores da violência.

 

A história de Gina, e de tantas outras mulheres trabalhadoras sociais nos remetem à real necessidade de refletirmos os processos de racismo nas estruturas da Prefeitura de São Paulo a nos mobilizarmos para que tais violências de trabalho não se perpetuem.

 

A desqualificação cotidiana contra os negros/as é analisada pela escritora e psicóloga Grada Kilomba, em Memórias da Plantação. Ela mesma, autora do livro mais vendido na edição de 2019 da Flip, foi acusada de utilizar um excesso de subjetividades, como uma desqualificação sobre a produção científica. Kilomba resume que qualquer forma de saber que não se enquadre na ordem eurocêntrica de conhecimento tem sido rejeitada, sob o argumento de não constituir ciência.

 

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A essa destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental, classificada como uma das facetas do epistemicídio, Sueli Carneiro esclarece em sua tese de doutorado: “(…) é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva; pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhes a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou ‘legitimado’”.

 

Sueli Carneiro esclarece em sua tese de doutorado: "....isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhes a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou ‘legitimado’”

 

 

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