01/02/2023 - 15:52
Por Cecília Figueiredo, do Sindsep
Grosso modo existe uma cidade do tamanho de Tremembé, em população, subsistindo nas ruas da Capital paulista. De acordo com estimativa do IBGE publicada em Diário Oficial da União, em 27 de agosto de 2021, o município de Tremembé, no Vale do Paraíba, somava 48.228 habitantes. A cidade de São Paulo concentrava um pouco mais vivendo nas ruas, em 2022: 48.261 pessoas. Este é o resultado do levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (Polos-UFMG). Baseado em dados do Cadastro Único, o estudo, feito desde 2012, bateu seu recorde no ano passado em número de pessoas vivendo nas ruas da capital.
Há uma “cidade” se virando à própria sorte pelas ruas da maior cidade da América Latina. O município mais rico do Brasil concentra 4 de cada 10 pessoas em situação de rua no País. Com base nas 192 mil pessoas inscritas no CadÚNico em todo o Brasil, o estudo da UFMG, divulgado em 26 de janeiro, indica que 25% das pessoas sem direitos estão nas ruas da Cidade de São Paulo.
Em 2012, o levantamento do Polos-UFMG contabilizava em São Paulo 3.800 pessoas em situação de rua. Embora o total no ano passado seja quase 13 vezes maior que dez anos atrás, o coordenador da pesquisa, André Luiz Dias, não descartou, na entrevista à GloboNews, uma subnotificação devido a problemas na atualização do CadÚnico. Representantes do Movimento Nacional da População de Rua também concordam que há problemas metodológicos. E reforçaram que o número apontado pela Prefeitura de São Paulo, de 31.884 pessoas em situação de rua, está bem longe da realidade.
Um agente social de consultório de rua, que estava acompanhando cidadão que precisava recadastrar-se no CadÚnico, sugere que a prefeitura utilize o censo para criar política pública para que as pessoas possam sair da vulnerabilidade. Integrante de uma equipe com mais 19 agentes, somente esse profissional atende diariamente 15 pessoas desprovidas de todos os direitos.
Se há uma suspeita a respeito de incongruências metodológicos no CadÚnico, os problemas políticos criados por quem (des)conduziu, nos últimos anos, as políticas públicas no Brasil, são certos e visíveis. Uma dessas certezas é que a gestão Ricardo Nunes não oferece resposta nem mesmo aos 32 mil cidadãos que a prefeitura contabiliza nas ruas paulistanas. Ainda que o número fosse esse, o Poder Público não garante nem metade das vagas para um pernoite, por exemplo, às pessoas que não têm alimento, emprego, teto para se abrigar e remédios para tratamento.
Quem prova isso são os Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro POP), como o Bela Vista, que começa todas as manhãs lotado e finaliza o dia, frequentemente, sem conseguir efetivar uma de suas funções: acolher quem precisa. A capacidade de atendimento do Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico (NPJ) é de 120 usuários por mês, mas atende 90 por dia. “Trabalham à exaustão, mas por serem terceirizadas não irão se afastar porque serão demitidas”, diz uma colega.
Uma técnica de Centro POP, que não identificaremos para evitar retaliações, explica que o “serviço estatal”, portanto vinculado à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), é para atender pessoas ou famílias em situação de rua, em alta vulnerabilidade, em dependência química. “Homens, mulheres, crianças, idosos, mulheres trans, homens trans que estão, por alguma razão, sofrendo a violação de seus direitos para conseguirem se reorganizar novamente. A função é atender, acolher, orientar e encaminhá-las a serviços conforme suas necessidades”.
Dos míseros 175 Centros POP distribuídos em 154 municípios do Brasil, seis estão na Capital. Nenhum, porém, garantindo no próprio espaço, local para banho, refeição, lavanderia ou hospedagem noturna. Tudo isso é terceirizado. Diferente de outras unidades no país, os Centros POP em São Paulo realizam somente registro e atualização no CadÚnico, atendimentos psicossociais e encaminhamentos para vagas em equipamentos conveniados, quando há vaga disponível.
De acordo com informações oficiais, o Poder Público disponibiliza 7.437 vagas em serviços executados por organizações da sociedade civil (OSCs), em serviços de modalidades diferentes. São CAEI (Centro de Acolhida Especial para Idosos), CTA (Centro de Acolhida II para Adultos por 24 horas), CAs (Centro de Acolhida Feminino ou Masculino), Centro Convalescente (Acolhida Especial para pessoas em período de convalescença), SEAS (Serviço Especializado em Abordagem Crianças, Adolescentes e Adultos em Situação de Rua), Núcleo de Convivência e Núcleo de Proteção Jurídico Social e Apoio Psicológico (NPJ). Nem todos garantem acolhimento. E mesmo juntando, além das vagas técnicas destinadas pelos Centros Pop, o município está bem longe de atender a metade da demanda.
Para se ter uma ideia, no centro de São Paulo há apenas 400 das 7.400 vagas, destinadas a famílias que estejam em situação de rua, 490 para imigrantes e 15 para pessoas que precisam de acessibilidade. Pingo no oceano!
“Além de poucas vagas, para garantir um atendimento digno, a política pública, não pode estar amparada apenas na Assistência Social, mas tem que estar articulada a outras áreas, e temos dificuldades nesse diálogo. Existem pessoas com questões mentais, que tomam medicações controladas, chegam num centro de acolhida e têm dificuldades pela falta de acompanhamento, porque o técnico não pode ministrar a medicação. É preciso haver diálogo entre as secretarias”, denuncia a trabalhadora do serviço que funciona com 26 profissionais, onde apenas 7 são servidoras públicas.
Escolha de Sofia é diária
Na recepção do Centro POP Bela Vista, Odair de Almeida segura sua senha e torce para conseguir naquele dia a acolhida. Ele mostra receitas, o pedido da Defensoria Pública e a caixa vazia do remédio controlado ao tratamento que realiza há 5 anos para a infecção crônica por Hepatite C. “Tenho encaminhamento para retomar o tratamento de hepatite C, no AME Várzea do Carmo, venho de Araraquara para tomar aqui esse medicamento de alto custo [Velpatasvir + Sofosbuvir, que custa em média R$ 40 mil a caixa com 28 comprimidos]”.
Na opinião de Odair, o problema não são as pessoas que atendem no Centro POP Bela Vista e o Santa Cecília (Rua Mauá), que também frequenta. "A gente sabe a dificuldade das assistentes sociais suprirem o desenvolvimento social, os governantes deveriam ver isso, porque para oferecer desenvolvimento social é preciso dar suporte [às assistentes], sem isso não conseguimos o que estamos precisando", pondera.
Nem todas as pessoas que recorrem ao serviço compartilham da avaliação de Odair, há muito estresse e situações de violência contra quem não tem a caneta: os trabalhadores. O desafio diário “da escolha de sofia” vem acarretando nas trabalhadoras(es) dissabores e adoecimento.
“Uma colega está afastada e acreditamos que foi em decorrência do trabalho; pela pressão, sobrecarga de trabalho e desvio de função que a maioria está submetida enquanto gestora de parceria. A colega foi ameaçada por usuários aqui do Centro POP, algo comum. Depois de já ter passado pela Defensoria Pública, Centro de Referência do Imigrante, Tribunal de Justiça e uma série de outros equipamentos públicos, ao chegar aqui em busca de orientação, acolhimento, uma vaga, e não consegue, acaba se desestabilizando. Por vezes não conseguimos responder a sua necessidade, e não por falta de vontade ou disposição nossa, mas por responsabilidade da gestão. Há, por exemplo, apenas um entrevistador social para fazer o cadastro [Cadúnico] de pessoas de seis territórios. A fila é gigantesca. Teoricamente, o entrevistador teria que atender a 15 por dia, ele atende a 27”, aponta uma segunda técnica ao falar do estresse que profissionais e usuários são submetidos.
Demis Vagner Correa, acompanhado de sua companheira gestante, está no Centro POP Bela Vista pela 10ª vez em busca de uma vaga de acolhimento. “Eu perdi o emprego como terapeuta para dependentes químicos, minha esposa também está desempregada. Não temos como voltar para Santos porque o Bolsa Família vai cair só no final do mês e todos esses dias dormindo na Praça da Sé um descaso muito grande com pessoas em situação de rua, principalmente casais. Em nove dias, um dia conseguimos acolhida, conseguimos nos alimentar e tomar um banho digno num desses centros”, reclama, ao denunciar a priorização de jovens e imigrantes em detrimento de pessoas idosas e casais, além da “enrolação” do serviço 156.
Nos últimos seis anos, outra trabalhadora relata que houve uma piora significativa no atendimento, na precarização dos Centros POP em São Paulo. “O discurso é de ‘vamos readequar’, ‘vamos humanizar’, mas o que se tem na prática é o serviço executado pelo parceiro e que está sob a gestão do município, mas sem qualquer respaldo. Então, pessoas estão expostas a todo tipo de risco, acidente, doenças. Há problemas crônicos como o de camas, compra de insumos de péssima qualidade, colchão de densidade para criança e adolescente destinado a adulto, sem forração adequada, o que acaba gerando infestações de percevejos de cama, muquirana, piolhos e, consequentemente, doenças nos/as usuários/as, como pediculose e coceira. Esses problemas e muitos outros são apontados em relatórios nos processos SEI por gestoras de parcerias, mas nada é feito pela SMADS”, diz, ao lembrar que nem mesmo protocolo existe para nortear o trabalho de gestão de parceria.
Segundo ela, há outros entraves para a execução de um trabalho adequado. Desinfecção de serviços que atendem pessoas em vulnerabilidade, por exemplo, é quase impossível porque significará fechar por 24h vagas que já são escassas. “Outro problema sério é a falta de diálogo com a ponta. Ideias mirabolantes são tomadas lá em cima. O Reencontro será uma herança para nós, como está sendo o CTA, que era vendido como serviço de primeiro mundo e alguns nem foram finalizados”.
Para uma das profissionais entrevistada a solução desses problemas passa pelo investimento em política de formação permanente de trabalhadores(as) da Assistência Social, valorização salarial, melhora e dimensionamento da estrutura física – que é insalubre e sem condições de trabalho --, serviços humanizados de atendimento menores, com acessibilidade, ventilação adequada, internet, ampliação de RH e pessoal de limpeza, além de disponibilidade de vagas para cidadãs(ãos).
“As pessoas estão em situação de rua porque todos os outros direitos foram violados. Portanto, não adianta arrumar vagas em galpões. As pessoas precisam de políticas transversais: habitação, educação, saúde, emprego, assistência social”, acrescenta.
Refugiados têm outro perfil
A ausência de diálogo interno entre as secretarias da Prefeitura de São Paulo com outros entes e com quem está na ponta atendendo pode ser medido também em outro Centro POP, o Mooca, onde há uma forte demanda de imigrantes, além da população em situação de rua.
“Recebemos, em média, 100 afegãos por mês. A maioria fala persa e um outro idioma, por sorte temos um trabalhador terceirizado que entende e fala o inglês, então concentramos nele os atendimento de imigrantes, mas ele se vira com o google tradutor para atender. Isso dificulta muito e torna menos célere o cadastro. O problema é que não há um planejamento territorial pela SMADS”, denuncia uma técnica do Centro POP Mooca.
De acordo com boletim da Agência da ONU para Refugiados, entre setembro de 2021 e dezembro de 2022, 6.299 vistos humanitários foram concedidos pelo Ministério das Relações Exteriores, por meio da Portaria Interministerial n. 24/2021, que dispõe sobre o visto temporário e a autorização de residência por razões humanitárias para nacionais afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação no Afeganistão.
“Eles chegam no aeroporto de Guarulhos e são orientados pelos motoristas de aplicativo a vir para cá. Não temos nenhum técnico bilíngue para fazer esse atendimento e nem vagas para essas famílias, que não são pessoas em situação de rua. Não há suporte da SMADS. Recebemos por mês, em média, 100 pessoas refugiadas do Afeganistão. Há famílias de cinco, seis pessoas. É outro perfil de atendimento, tem a questão religiosa e cultural muito forte e diferente. Já atendemos cineastas, médicos, jornalistas.Tem imigrantes e brasileiros na porta, isso gera briga, violência, porque as pessoas em situação de rua acham que estão sendo preteridas. O imigrante não se fazendo entender fica estressado”, completa outra técnica do Centro POP Mooca, ao detalhar que o serviço atende 170 imigrantes por mês, de lugares variados.
O Centro POP Mooca, que recebe também famílias inteiras da Venezuela, Angola, Congo, Marrocos, Argentina e outros países, conta prioritariamente com a boa vontade das(os) trabalhadoras(es) dessa unidade para oferecer algum tipo de ajuda, bem distante do atendimento humanitário divulgado pelo prefeito Ricardo Nunes na mídia. “Foi feito um curso da SMADS sobre os direitos dos imigrantes, mas o que fazer para não separar famílias? Não há planejamento estratégico nenhum. Os consulados entram em contato conosco, principalmente o da Argentina, para nós acolhermos, mas não é o acolhimento de CTA que eles buscam”.
A unidade é um serviço de demanda espontânea para pessoas em situação de rua, mas também realiza o CadÚnico para serviços de acolhimento, alta hospitalar, consultório na rua. O serviço atende a mil solicitações de vagas por mês, por ser referência na zona leste, e conta com RH mínimo, dois cadastradores, a “sala” para acolhimento não tem sigilo – dividida por uma estante --, não há acessibilidade e nem vagas adequadas para a demanda.
Posição do SINDSEP
Para a coordenadora da Região Sudeste Sindsep, Maria Mota, a falta de retaguarda da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social para a execução do trabalho na cidade parece ter se tornado uma marca da pasta. "Sem dúvida essa é a marca do prefeito: no discurso, compromisso, na ação, total desleixo, desrespeito e má gestão, haja vista como têm sido tratados os equipamentos públicos, trabalhadores(as) e usuários(as); da mesma forma que a Cidade, largada", avalia.
Segundo a dirigente, o atendimento digno nunca esteve tão distante. "Não se discute com responsabilidade a política de atendimento à população em situação de rua. A abertura de míseras vagas de acolhimento para um mar de gente que sobrevive e permanece invisível na Cidade, além de insuficiente não é o único caminho. Atender a população em situação de rua, de fato não é responsabilidade exclusiva da Assistência Social. Mas, esse gabinete sabe qual o papel da Assistência Social no atendimento à população de rua quando oferta moradia e atendimento digno? Quais articulações tem feito, se que é realiza alguma, com as demais políticas publicas?", questiona Maria.
Em sua avaliação, a implantação de serviços como Vila Reencontro e centros de acolhida em galpões, sem discussão com quem executa a política pública da assistência não passa de ação midiática. "Implantar esse tipo de serviço, sem conversar com trabalhadoras(es), para criar fatos na mídia, é fácil, o difícil é encarar as pessoas que estão em situações diversamente complexas e, portanto, necessitam de soluções amplas, que exigem responsabilidade, respeito, ética e a participação de trabalhadoras(es), usuárias(os) e todas as secretarias de governo".
Frente a isso, o Sindsep seguirá denunciando o descompromisso da gestão Ricardo Nunes/Carlos Bezerra com o SUAS e cobrando providências que tratem essa "cidade de pessoas em situação de rua" dentro da Capital com políticas públicas resolutivas.